sexta-feira, 25 de outubro de 2013

«A Cura», de Pedro Eiras

Editora: Quidnovi
Ano de Publicação: 2013
Nº de Páginas: 232

Um médico ateu, psicanalista conceituado e invejado, aceita tratar sob total sigilo um homem mui sui generis, que desempenha um ínclito cargo na Igreja. Os sintomas que o paciente afirma ter: «sinto um extremo cansaço, uma sensação de tristeza, de desamparo», «Tenho vontade de dormir muito, sem ver ninguém»; a sensação de pânico surgia-lhe «sem aviso, sem regra, sem motivo.»
Dada a extrema confidencialidade que o analisando requerera, devido a ser uma figura pública, as sessões de terapia teriam de ocorrer à noite, uma vez por mês e sob o mesmo ritual: quando faltava três minutos para a meia-noite a iluminação exterior e interior dos arredores ia abaixo, parava um carro preto na entrada do prédio do consultório, ele subia no elevador (que, excepcionalmente, estaria operacional, tal como toda a parte eléctrica do espaço onde o terapeuta exercia a sua profissão), decorria a consulta que tinha sempre o tempo que o egrégio paciente considerava necessário, e depois o «apagão» era «desarmado». De consulta em consulta, nessas noites que «deveriam parecer tão reais como um sonho», Z. — o paciente —, instalado no divã de veludo vermelho (uma réplica do mesmo que utilizara Freud, e também o mesmo que Wagner, o professor que tivera sido, ou melhor, o mestre que este psicanalista escolhera seguir) ia, sob processo catártico, transpondo a origem dos seus desejos inconscientes e traumas — quais «âncoras» submersas num tumultuoso mar de emoções. Este impaciente paciente, através de sofrimentos que enfrenta com denodo, quer saber a verdade sobre si mesmo, mas acima de tudo quer ver curada a sua mente, não a sua alma.
Entre o analisando e o analista existe dois universos antípodas, que chocam. Todavia, a delicada fronteira que deveria existir entre médico-paciente é derrubada, por o psicanalista, ao longo das treze consultas, ter revisto nos sonhos de Z. e suas interpretações, a sua própria fraqueza existencial e origem dos apegos, «máscaras» e «muletas» que criou num mundo à parte. Criada a empatia e franqueza mútua, vão conhecer-se um ao outro e, fundamentalmente, conhecer-se a si próprios. Assim, não é apenas o paciente que exorciza os seus recalques, também o Doutor encontra conforto nas sessões e, quem sabe, cura a si próprio. Deste processo terapêutico inusual o leitor está longe de saber se resultará cura, curas ou se será um caso fracassado. 
Quem escolher ler A Cura terá o ímpeto, como o que um leitor de policiais tem, de chegar até às últimas e reveladoras páginas do romance, onde aguarda-nos a apoteose, o «sumo» da história.
Este romance publicado pela Quidnovi funde conceitos de Psicanálise e Religião com ficção. Tem doses de mistério e aturdimento, para desvendar as memórias do narrador (omnisciente). Pedro Eiras explora a mente de dois homens e disseca a complexidade das emoções humanas, com sucesso. A Cura é um romance bem delineado, quer na veste psicológica e complexa dos dois personagens centrais, quer por nenhum acontecimento narrado ser irrelevante. A revelação de quem é o paciente do Doutor acontece na página 33 do romance, e é, talvez, a primeira força motriz que nos dá maior alento para a conclusão da leitura. Ter revelado o nome do narrador só nas últimas páginas do romance, favorece a curiosidade do leitor e revela-se como um trunfo de escritor perspicaz. A não descrição do local geográfico onde decorre a trama é um outro pró do livro. O autor de Bela Dona e outros monólogos (Companhia das Ilhas, 2012) inclui no romance referências a várias obras bibliográficas de Freud e remete-nos para livros que abordam o tema principal do livro, Psicanálise. Nota-se por parte do escritor um elaborado trabalho de pesquisa sobre o assunto, mas essencialmente é revelador o modo como ele entrelaçou com mestria os conceitos psicanalíticos neste seu trabalho literário. O que mais surpreende em A Cura é o fluir desenvolto, repleto de simbolismos, da narração e por haver poucas alternâncias dos planos em que a história se desenrola. Tudo é engendrado. E com inteligência.
Pedro Eiras (n. 1975), professor de Literatura, com obra publicada desde 2001 (na sua maioria teatro e ensaio) é com certeza um nome da nova literatura portuguesa a seguir.

Excerto:
«Talvez por pena de si, ou pena de mim, para eu não sair daquele quarto a pensar que ela era frígida ou tímida ou conservadora, talvez me quisesse conquistar para conquistar a sua própria estima ameaçada. E fazia amor comigo, não por amor, mas para mostrar que sabia fazer amor como as outras mulheres: também tinha um corpo e um gozo, um corpo magro e pálido, mas vivo e feroz na sua fome. Fazia amor como quem sustém as lágrimas. E eu deixava-me ir.» (p. 134)

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