domingo, 3 de janeiro de 2016

«Assim começa o mal», de Javier Marías

Editora: Alfaguara
Data de Publicação: Outubro de 2015
N.º de Páginas: 532

Foi dado à estampa em Setembro de 2014, em Espanha, o tão aguardado novo romance de Javier Marías (n. 1951), um dos mais conceituados autores da actualidade. A tradução portuguesa de Así empieza lo malo, um brilhante trabalho, faça-se notar, que esteve a cargo de Paulo Ramos, está nos escaparates livreiros desde Outubro transacto. A obra, uma espécie de romance histórico-político-melodramático, teve o mérito de ser considerada pelos críticos literários do Ípsilon, a revista cultural do Público, como o melhor livro de ficção publicado em Portugal em 2015.
«Assim começa o mal e o pior fica para trás», é desta a citação de Shakespeare, retirada de Hamlet, que o autor madrileno, cuja obra encontra-se publicada em quarenta e dois idiomas, buscou o título para o seu 16.º romance.
A história é-nos narrada por Juan de Vere, um quinquagenário que, volvidos 30 anos após todos os acontecimentos que em catadupa se desenrolaram, recorda os seus tempos de juventude e a subjacente imaturidade que quem rompe a idade adulta acarreta.
Na Madrid de 1980, época pós-ditadura franquista, onde a agitação, o hedonismo e a liberdade imperava, Eduardo Muriel, um reputado produtor de cinema, cujo traço físico mais característico é possuir uma pala no olho, contrata Juan, um jovem recém-formado de 23 anos, para o secretariar. Essa função, que a priori seria apenas para incumbências de carácter profissional, faz com que Juan de Vere passe a morar na casa do patrão e presencie à desditosa relação que o cineasta mantém com Beatriz Noguera, a mulher; um casamento onde os afectos não fazem parte, uma relação de fachada, que apenas mantém as aparências quando as festas têm lugar. O narrador, mesmo na inexperiência da sua idade, e sem saber que o casal tinha, de forma tácita, feito há anos um pacto, reflete: «Há algo de vil, há algo sujo em fazermo-nos passar por quem não somos, em comportarmo-nos dissimuladamente». (p. 212)
Quando chega aos ouvidos de Muriel o rumor de que um grande amigo seu, o médico Van Vechten, possa ter cometido no passado actos imorais que podem comprometer a sua amizade, nomeia o inexperto assistente para empreender uma sigilosa e temerosa investigação sobre os supostos actos reprováveis do estimado amigo, que goza desde sempre de prestígio, fama e dinheiro. Juan, «que ignorava aquilo que procurava», fará os possíveis para conseguir descortinar os actos ilícitos do médico e satisfazer o patrão.
Ao mesmo tempo que envereda na sua missão de espia fora de portas, Juan, não consegue impedir que o seu lado curioso e voyeurista fique inapto também porta dentro, e durante a noite fica sempre de ouvidos em alerta, «Esquecemo-nos muito mais daquilo que nos sai da boca do que aquilo que nos entra pelos ouvidos» (p. 432), para tentar perceber a razão de Muriel tratar a mulher (para o jovem de Vere, Beatriz embora tivesse 40 anos e já fosse mãe de três filhos, preservava a beleza e a sensualidade intactas) de modo frio e verbalmente violento.
Assim começa o mal centra-se em dois mistérios bem delineados pelo autor, que aumentam o nível de curiosidade no leitor e só são revelados nas páginas certas. O que mais se destaca neste romance que aborda temas como a culpa, o perdão, o castigo, o desejo, o rancor, o casamento, a amizade, é a habilidade extraordinária de Javier Marías descrever sentimentos, momentos e lugares de forma clara, real.
O autor de romances como Coração Tão Branco, Amanhã na Batalha Pensa Em Mim e Os Enamoramentos (todos chancelados pela Alfaguara, a editora que por último tem publicado em português as suas obras), usa e domina de forma brilhante a linguagem cirúrgica que, por norma, não costuma agradar a muitos leitores, pelo seu pendor destilado, pouco corrente. O estilo minucioso, com inserção de léxico pomposo, que é apanágio de Javier Marías, é composto por longos diálogos prenhes de reflexões de se sublinhar, e por solilóquios que por muito tempo nos faz cortar a respiração.
Javier Marías não é autor dado a facilitismos. Assim começa o mal é um livro que não é indicado para todo o tipo de leitores. É denso, demora-se a entrar nele, principalmente se for o primeiro título do autor que se lê. Para os leitores com um certo tipo de bagagem literária, este romance poderá ser descrito como arrebatador e inesquecível, e com muito conteúdo para reflectir.


Excertos
«(…) a fé é volúvel e frágil: desequilibra-se, recupera-se, fortalece-se, quebra-se. E perde-se. Crer nunca é de fiar.» (p. 29)

«As sensações são instáveis, transformam-se em lembranças, variam e bailam, podem prevalecer sobre aquilo que se disse e ouviu, sobre o repúdio ou a aceitação. Às vezes as sensações fazem desistir, às vezes dão ânimo para tentar de novo.» (p. 102)

«Má coisa é sentirmo-nos em dívida para com quem nos fez mal (…)» (p. 317)

«(…) no fundo fica-nos sempre a nostalgia da vida que desperdiçámos, e nos maus momentos refugiamo-nos nela como num sonho ou numa fantasmagoria.» (p. 497)

«(...) ao longo de uma vida, quem sabe o que vai ser, ninguém deve abster-se por conjecturas ou previsões que ultrapassam a nossa compreensão, temos apenas o dia de hoje e jamais o de amanhã, por muito que por vezes nos entreguemos às suposições.» (p. 527)

«O passado tem um futuro com o qual nunca contamos.» (p. 528)

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